Como o TRT de São Paulo, o maior do país, posicionou-se frente às demandas ajuizadas no período que antecedeu o golpe militar de 1964 e logo após a instauração dessa ditadura no Brasil? Quais as táticas encontradas por uma trabalhadora na década de 50 no interior do Rio Grande do Sul para enfrentar a disciplina da fábrica onde atuava e conseguir amamentar o filho doente? Essas e outras perguntas puderam ser respondidas graças à preservação de processos trabalhistas e os casos usados como exemplos pela historiadora Ângela Maria de Castro Gomes para demonstrar a importância de se conservar processos e outros documentos produzidos pela Justiça do Trabalho.
“A preservação dos processos trabalhistas é absolutamente vital para se poder conhecer a história das relações de trabalho, a história da Justiça do Trabalho e a história dos direitos de cidadania no Brasil”, enfatizou a pesquisadora, convidada para falar aos presidentes e corregedores dos TRTs reunidos no TRT paulista durante a 4ª Reunião do Coleprecor deste ano.
Convidada pelo Comitê Gestor do Programa Nacional de Resgate de Memória da Justiça do Trabalho, a professora Ângela Gomes foi apresentada aos presentes pela desembargadora Magda Biavaschi (TRT do Rio Grande do Sul – 4ª Região), membro do Comitê, que aproveitou para ressaltar a relevância dessas reflexões tendo em vista a vigência da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) e do princípio de que preservar é dever do Estado e direito do cidadão. “Não é só preservar esses documentos, mas torná-los acessíveis à população para que se possa reescrever a história com base no contido nessas linhas e entrelinhas que contam a história do país”, explicou.
Com a experiência de quem faz pesquisas relacionadas à Justiça do Trabalho desde a década de 70, a professora iniciou destacando que toda memória é seletiva, mas que lembrar é uma necessidade humana e social. “O passado está dentro de nós, não antes ou fora, e o pior dos usos do passado é esquecê-lo porque fazer isso é como esquecer quem somos e porque nos tornamos o que somos”, asseverou.
Ela reconheceu que os arquivos nunca foram tão valorizados como atualmente e é graças a essa mudança que o tema tem chamado a atenção de vários e diferenciados grupos e instituições, inclusive do Judiciário. “Nossa sensibilidade para viver o tempo mudou. Mudou assim o que os historiadores chamam de regime de historicidade. No século 21 precisamos de orientação”, disse, detalhando que o novo tempo passa tão velozmente, que produz um sentido de efemeridade constante. “O presente, mal nos damos conta, já é passado. Por isso precisamos muito das nossas experiências, nossas referências passadas, que se tornam nosso maior e, às vezes, único patrimônio para pensar”.
Essa nova sensibilidade para viver o tempo, explicou a historiadora, cria uma demanda para não se esquecer, para se preservar os vestígios do passado e produzir novos vestígios a partir das fontes. “A memória é cada vez mais um dever para os Estados, para as sociedades”, sublinhou.
Com relação especificamente ao Judiciário, a professora apontou o crescimento das demandas de acesso e transparência que, segundo avaliou, são justas e profundamente necessárias para o bom funcionamento das instituições sociais e judiciárias. Como exemplo, citou os julgamentos transmitidos ao vivo pela TV Justiça, “cuja imensa audiência é algo inacreditável até há pouco”. “As questões do judiciário estão mais evidentes. Sem dúvida o lugar do judiciário mudou no mundo e no Brasil. No caso da Justiça do Trabalho esse lugar também mudou muito, a começar pela ampliação da competência”, afirmou.
Ainda com relação ao judiciário trabalhista, ela destacou a ampliação da política neoliberal da década de 90 que na sua esteira criticava a existência desse ramo do judiciário, levando-o a reagir e contribuindo para um maior interesse e valorização dessa justiça. “A experiência fez essa magistratura reavaliar o seu papel. A Justiça do Trabalho colocou-se de pé e argumentou a sua relevância, de papel estratégico na conformação dos direitos de cidadania no Brasil, impensável sem os direitos do trabalho”, salientou.
Outro ponto destacado pela historiadora referiu-se às características dos processos judiciais: “tais documentos são preciosos não só pelas informações que contam como igualmente pelas que não contam. A dimensão lacunar de seus registros, ao contrário do que se imagina, é, até por tal incompletude, absolutamente fundamentais para escrever a história”. Ela explicou que essa característica fragmentada permite que se tenha acesso a questões como relações de poder, a vida cotidiana de homens comuns. “Processos trabalhistas são fontes muitas vezes únicas para se ouvir esses homens ainda que na fala de outros. São fontes raras ao que se chama de “dramaturgia do real”, são como fashes, flagrantes de vidas diversas. Os processos trabalhistas iluminam a vida, partes das vidas de atores desconhecidos mas não desimportantes, vividas na obscuridade, ficando por isso geralmente indisponível para a sociedade mais ampla. Porém, processos trabalhistas iluminam sobretudo a lógica e os ritmos da instituição de que as produz”.
Conforme a professora, todos os processos são relevantes porque são provas, vestígios históricos de uma história das relações do trabalho e, por isso, essenciais como documento para uma história da Justiça do Trabalho que se integra como história do Judiciário do Brasil.
Como exemplo, citou o caso de Terese, cuja questão central é a disciplina fabril e a condição feminina nos anos 50. Nele, a revelação da história de uma sapateira que é apresentada à Justiça do Trabalho de Novo Hamburgo (RS) como uma mulher indisciplinada, que falta ao serviço e desafia a chefia, e de outro é defendida como uma mãe dedicada, que não abre mão de amamentar o filho doente. O processo tramitou durante 20 anos e percorreu todas as instâncias da justiça trabalhista. “Trata-se de um texto paradigmático da ‘dramaturgia do real’, um fragmento que captura o modo de pensar, de agir e sentir pondo em cena uma mulher trabalhadora e mãe. Como um fash nos introduz ao espaço fabril, às relações entre marido e mulher, às relações de amizade, às relações de trabalho e exercício da maternidade de um trabalhadora, ao ambiente de uma vara, de um tribunal e do TST”, explicou.
O caso está descrito no artigo “A sapateira insubordinada e a mãe extremosa: disciplina fabril, táticas de gênero e lutas por direito em um processo trabalhista”, de autoria do professor Benito Bisso Schmidt, ex-diretor do Memorial da Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, publicado no livro “A Justiça do Trabalho no Brasil e sua História”, com a autoria do professor Fernando Teixeira da Silva, da Unicamp. A obra, segundo a professora Ângela Gomes, é um exemplo do que já está sendo feito com processos trabalhistas quando preservados e disponibilizados. “É a primeira publicação que tem objetivo especifico e explícito de demonstrar a fertilidade do processo trabalhista bem como o uso de fontes orais para estudar a Justiça do Trabalho no Brasil.”
O segundo exemplo dado pela historiadora, e que consta na mesma obra, é a análise de cerca de 500 processos que tramitaram no TRT paulista entre janeiro de 1963 e março de 1964. Entre outras conclusões, a pesquisa permitiu entender que, ao contrário do que muitas vezes se afirmou, não eram as categorias consideradas mais fracas que recorriam à Justiça do Trabalho mas justamente as mais organizadas, que tinham sindicatos mais fortes, e que o modelo que imperava no Brasil estava longe de ser o contratualista. As revelações constam do artigo “Entre o acordo e o acórdão: a Justiça do Trabalho paulista na antevéspera do golpe de 64″.
Ao final da fala da historiadora, a desembargadora Eneida Melo (TRT Pernambuco – 6ª Região), membro do Comitê Gestor indicada pelo Coleprecor, manifestou-se lembrando que a preservação da memória é um tema árido tendo em vista a tradição de eliminação de documentos. No entanto, enfatizou que apesar dos argumentos referentes às dificuldades de se guardar o material produzido serem razoáveis, atualmente são incompatíveis com nova realidade histórica. Ela compartilhou ainda a prática do TRT pernambucano que, segundo disse, teve uma fase muito destrutiva. “Era uma política geral de descarte periódicos. Hoje fazemos é demorar o máximo possível para descartar, há mais de 10 anos que não fazemos. A ideia é o mais possível evitar descartar”, concluiu.
A desembargadora Magda Biavaschi também falou da experiência gaúcha, que desde 2000 não elimina mais processos. Atualmente são mais de 1,7 milhão de processos guardados em um prédio alugado para esse fim, além de manter parcerias com universidades públicas.
Ambas as magistradas também registraram a preocupação com o descarte dos últimos processos em papel em produzidos pelo judiciário trabalhista, tendo em vista a iminente instalação do sistema de Processo Judicial Eletrônico (PJe) em todo o país.
Texto: Aline Cubas – TRT/MT
Foto: Tiago Juliani